A opinião de Sérgio Dias, coordenador científico do iMM-Laço Hub, na coluna sobre cancro da revista Visão.
As descobertas de Papanikolaou foram reconhecidas pela comunidade médica e científica como verdadeiramente revolucionárias, tendo em muito contribuído para a redução da incidência e mortalidade dos cancros do cólo do útero. A opinião de Sérgio Dias, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular
O que será necessário para que produzam selos de correio com a nossa imagem, ou um sumário da nossa obra ou de uma contribuição científica, literária, etc?
Não há, aparentemente, regras rigidamente definidas para que se atribua a honra (o destaque!) de aparecer num selo, seja de circulação generalizada ou de comemoração. Habitualmente, e com a raridade crescente desse ato, são raras as pessoas que observam com atenção a figura (ou acontecimento) que aparece nos selos que colocam nas cartas a enviar ou que os observam nas cartas que recebem. A filatelia, o estudo dos selos e das tradições postais, continua, no entanto, presente em organizações e na cabeça de aficionados, dando o merecido reconhecimento à arte de “fazer selos”. O lançamento de selos comemorativos, por exemplo, continua a ser importante e relevante a vários níveis. No ano de 1998, o Congresso americano aprovou a produção de um selo com o objetivo de gerar verbas para a investigação em cancro da mama (“financie a luta, encontre a cura”, lê-se no elegante selo). Custa 75 cêntimos e as suas vendas, desde o lançamento em 1998, geraram cerca de 76 milhões de dólares para apoiar a investigação sobre o cancro da mama. Verdadeiramente extraordinário.
Na verdade, seja qual for a área do conhecimento que nos interessa, o lançamento de selos comemorativos merece atenção cuidada. Na área de investigação do cancro, por exemplo, existem inúmeros selos comemorativos realçando uma causa (como a referida anteriormente) ou uma personalidade especialmente relevante para um determinado cancro e/ou área de estudo.
Em 1978, foi produzido um selo realçando a importância do trabalho de um médico investigador de origem grega para o diagnóstico precoce de cancros do cólo do útero. A figura médica ao microscópio, rodeada pelas palavras “deteção precoce do cancro” e “teste pap”, surge nos selos que na altura do lançamento custavam 13 cêntimos. Quem foi este médico e investigador?
Georgios Papanikolaou, nasceu em Kymi, na Grécia, em 1883. Estudou inicialmente filosofia, música e literatura, tendo tirado o curso de Medicina por insistência do seu pai. Uma vida profissional dinâmica levou-o a emigrar para os EUA em 1913, tendo ingressado no Departamento de Anatomia da Universidade Cornell em 1914. Nesse ano, Papanikolaou publica um artigo notável onde demonstra que a partir de esfregaços de muco vaginal recolhidos durante o ciclo menstrual é possível observar células cujas características permitem indicar precisamente a fase do ciclo em que fêmeas de porquinhos-da-índia se encontravam. Essa técnica, de estudo de esfregaços vaginais para pesquisa da morfologia celular, foi mais tarde denominada “Teste de Papanicolau”. Com a ajuda e participação ativa de sua mulher, Mary Papanikolaou (forneceu amostras de esfregaços vaginais de si própria, diariamente, durante 21 anos, tendo convencido amigas a fazerem o mesmo – garantindo o acesso a um número de amostras significativo), Georgios Papanikolaou verificou que era possível distinguir ao microscópio células normais de células malignas. Esta observação, e a possibilidade de realizar testes não invasivos e baratos, foi verdadeiramente revolucionária na altura, e continua até aos dias de hoje. Em colaboração com colegas do New York Hospital, afiliado à Universidade Cornell, Papanikolaou publicou em 1943 um livro incontornável, intitulado Diagnóstico de Cancros Uterinos pelo esfregaço vaginal, onde revela que alterações morfológicas em células recolhidas de esfregaços estão ligadas às fases do ciclo menstrual, à influência das hormonas e à presença de células de cancro em fases precoces. Extremamente importante, demonstra inequivocamente que esfregaços de amostras recolhidas da vagina ou do cólo do útero podem ser visualizados ao microscópio e facilmente analisados, o que torna o teste de papanicolau facilmente implementável em laboratórios e clínicas a nível mundial.
As alterações morfológicas ligadas a malignidade, ou ao processo de carcinogénese, tinham sido já detetadas por Walter Walshe, que estudou células do pulmão um século antes das descobertas de Papanikolaou. Merece também destaque o trabalho de um citologista (estudo das formas das células) romeno, Aurel Babes, que terá feito observações idênticas às de Papanikolaou utilizando abordagens técnicas distintas. No entanto, a implementação do “Teste de Papanicolau” foi realizada pelo médico e cientista grego.
O que este teste permite é, então, detetar alterações morfológicas associadas a malignidade. As células “cancerosas” têm alterações morfológicas que sabemos, agora, explicar, nomeadamente pela infeção pelo vírus do papiloma humano (hpv) e por mecanismos moleculares descritos anos depois de Papanikolaou ter realizado os seus estudos e feito as suas descobertas. Tais alterações morfológicas acontecem numa fase precoce do processo de carcinogénese uterina, permitindo assim o rastreio e intervenção terapêutica preventiva e mais eficaz dos cancros do cólo do útero, por exemplo.
As descobertas de Papanikolaou foram reconhecidas pela comunidade médica e científica como verdadeiramente revolucionárias, tendo em muito contribuído para a redução da incidência e mortalidade dos cancros do cólo do útero. Papanikolaou foi também reconhecido simbolicamente, existindo bustos e estátuas suas espalhadas um pouco por todo o mundo. Na Universidade Cornell, em Nova Iorque, está instalada uma exposição desde 2011 sobre a sua vida e obra. Teve também a sua imagem desenhada em notas de 10,000 dracmas (moeda grega), até ao aparecimento do euro. E os selos, com o valor de 13 cêntimos, emitidos como edição comemorativa em 1978.
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