A opinião de Sérgio Dias, coordenador científico do iMM-Laço Hub, na coluna sobre cancro da revista Visão.
“Um tema que tem desafiado a comunidade científica e que tem causado alguma ansiedade na população em geral diz respeito ao possível efeito que a utilização (massiva!) de telemóveis possa ter no DNA das nossas células. Ou seja, no limite será que o uso de telemóveis pode causar danos no DNA, levando a morte celular ou ao aparecimento de determinados cancros?” A opinião de Sérgio Dias, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular
Em 1953, James Watson e Francis Crick, com a enorme ajuda dos biofísicos Rosalind Franklin (terá sido ela na verdade a pessoa-chave dessa descoberta) e Maurice Wilkins, revelaram que a estrutura da molécula de DNA (ADN em português) é constituída por um polímero em dupla-hélice, uma espiral constituída por duas cadeias de DNA enroladas uma na outra.
O DNA é um longo polímero feito de unidades mais simples (monómeros) ou nucleótidos, cuja cadeia principal é constituída por moléculas de açúcares e fosfatos, unidas por ligações químicas específicas. Ligadas à molécula de açúcar, encontramos então os monómeros: uma de quatro possíveis bases “nitrogenadas”, duas purinas (adenina e guanina) e duas pirimidinas (citosina e timina) ligam-se à cadeia principal.
Uma cadeia de DNA liga-se a outra através de pontes de hidrogénio e a sequência desta ligação é específica: monómeros de adenina ligam-se apenas a timina, e as citosinas ligam-se a guaninas. Esta sequência “de letras” representa o código genético: um segmento de DNA que contenha o código para produzir uma proteína específica é denominado “gene”.
Durante a divisão celular, para que as células filhas recebam o mesmo material genético da célula mãe, o DNA é replicado através da separação das duas cadeias: às cadeias de DNA separadas vai então ligar-se uma enzima denominada “DNA polimerase”, cuja função é criar cadeias complementares de DNA. Ou seja, a DNA polimerase recria de forma fidedigna duas novas cadeias de DNA complementares, mantendo a ordem dos monómeros (adenina liga-se apenas a timina, guanina a citosina) e a informação genética codificada pelas sequências corretas de DNA. Em cada célula, o DNA encontra-se organizado em complexos DNA-proteína densos, denominados cromossomas. Esta extraordinária molécula contém a informação genética necessária e essencial para a função das células, bem como para a transmissão de características hereditárias de pais (mães) para filhos(as).
Sabemos agora de forma bastante detalhada que vários tipos de substâncias e fatores (globalmente conhecidos por mutagénicos) podem modificar a sequência de DNA das células, e causar danos na molécula de DNA. Os mutagénicos incluem alguns agentes oxidantes (como radicais livres de oxigénio) e radiação eletromagnética. No caso dos agentes oxidantes, calcula-se que em cada célula humana cerca de 500 bases (os monómeros) poderão sofrer diariamente danos por oxidação. A maior parte desses danos são reparados, mas quebras na cadeia dupla de DNA são especialmente difíceis de reparar e podem produzir mutações pontuais, inserções ou deleções na sequência de DNA e mesmo promover trocas de material genético entre cromossomas. A consequência dramática desse tipo de alterações, ao gerar mutações em genes promotores de divisão celular descontrolada, ou à amplificação de genes que impeçam a morte celular (por exemplos), poderá ser o aparecimento de diferentes tipos de cancro.
No que respeita a radiação eletromagnética, sabemos que a radiação ionizante inclui raios X, o radon e os raios cósmicos tem uma elevada frequência (comprimentos de onda mais curtos) e uma energia elevada. No outro extremo do espetro eletromagnético, encontramos as ondas rádio, as micro-ondas, os raios infravermelhos e a luz visível (a que conseguimos observar). Este tipo de radiação tem comprimentos de onda mais longos e menor energia. Por terem mais ou menos energia e maior ou menor comprimento de onda, os diferentes tipos de radiação penetram melhor ou pior os tecidos e células com que contactem. Daí que diferentes tipos de radiação têm sido utilizados com fins médicos (os raios X para radiografias, a radiação gama para tratamento de certos cancros, ou para o diagnóstico de cancros no contexto de medicina nuclear).
Um tema que tem desafiado a comunidade científica e que tem causado alguma ansiedade na população em geral diz respeito ao possível efeito que a utilização (massiva!) de telemóveis possa ter no DNA das nossas células. Ou seja, no limite será que o uso de telemóveis pode causar danos no DNA, levando a morte celular ou ao aparecimento de determinados cancros?
Importa aqui lembrar que os telemóveis emitem radiação na região da radiofrequência (ondas rádio) do espectro eletromagnético, ou seja, muito baixa energia e longos comprimentos de onda, com frequências da ordem dos poucos hertz (medida utilizada para quantificar a frequência de radiação). Este tipo de energia é demasiado baixa para causar danos no DNA, contrastando com as elevadíssimas frequências emitidas pela radiação ionizante (da ordem dos muitos milhões de Hertz), essa sim, potencialmente causadora de alguns tipos de cancro. Dados obtidos por estudos epidemiológicos realizados em vários países ao longo das últimas décadas (desde que a utilização de telemóveis se tornou generalizada) não encontraram qualquer relação entre a utilização deste tipo de aparelhos e a incidência de qualquer tipo de cancro.
O que conseguimos observar com os nossos olhos “cai” dentro do espetro da luz visível, mas o espetro eletromagnético é bastante mais vasto. A exposição das nossas células a certos tipos de radiação pode, de facto, causar danos no DNA e levar ao desenvolvimento de certos tipos de cancro. Não é o caso da utilização de micro-ondas para aquecer refeições, ou dos telemóveis para comunicarmos uns com os outros.
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