A opinião de Sérgio Dias, coordenador cientifíco do iMM-Laço Hub, na coluna sobre cancro da revista Visão.

“O Homem da Atlântida apresentava de forma exuberante características que demonstravam a ausência de morte celular por apoptose, nomeadamente as suas membranas interdigitais.” A opinião de Sérgio Dias, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular.

Estreou (em Portugal, na RTP2) a 4 de março de 1981 uma série que, de uma forma ou de outra, foi impactante para a minha geração. O Homem da Atlântida, papel principal desempenhado por um jovem ator norte americano, Patrick Duffy (que se tornou anos mais tarde numa verdadeira estrela planetária, com a série Dallas), centrava-se à volta das desventuras e aventuras do último sobrevivente do mítico continente, a Atlântida. Mark Harris, a personagem de um homem amnésico que teria vindo da Atlântida, tinha verdadeiras características de anfíbio, ou pelo menos de um ser que viveria na água, com guelras junto às orelhas e membranas entre os dedos das mãos e pés. Essa última característica, das membranas interdigitais, dava-lhe evidente vantagem a nadar, nomeadamente por baixo de água. Os jovens daquela altura ficavam (ficávamos) muito impressionados com a forma quase-mágica com que Mark Harris conseguia fugir aos vários perigos, nadando velozmente debaixo de água.

Durante o desenvolvimento embrionário humano, para nascermos com dedos separados sem membranas interdigitais, ocorre um processo altamente controlado denominado morte celular programada, ou apoptose (do grego, “cair”, como folhas mortas que caem de uma árvore). Ou seja, as células que formam uma “rede” entre os dedos morrem por apoptose, cometendo um verdadeiro “suicídio coletivo”, para que a “rede” desapareça e a separação dos dedos aconteça. A apoptose é, assim, essencial para eliminar células indesejadas – aquelas que não desempenham qualquer função relevante e que terão sofrido danos no seu DNA impossíveis de reparar. Células que devem ser eliminadas, para que a função de um determinado órgão seja preservada. Estima-se que, num adulto saudável, ocorra a morte por apoptose, de cerca de 50 a 70 mil milhões de células por dia. Numa criança ou adolescente esse número estima-se que seja na ordem de 20 a 30 mil milhões de células por dia. Ou seja, é um processo complexo, mas fisiológico (normal) e necessário para a eliminação de células. Consequentemente, a apoptose em excesso, ou demasiada morte celular, pode conduzir ao desenvolvimento de doenças degenerativas, das quais as neurodegenerativas como a doença de Parkinson são um exemplo conhecido. Em contraste, uma reduzida morte celular por apoptose, ou bloqueio dos processos moleculares que levam à apoptose, pode resultar no desenvolvimento e progressão de um cancro.

Para além da apoptose, existem outras formas de morte celular, por isso é essencial conseguir distingui-las. Quando células morrem por apoptose, ocorrem alterações morfológicas específicas como a condensação e encolhimento da célula, colapso do citoesqueleto celular por degradação de proteínas que o constituem, dissolução do envelope nuclear e fragmentação do DNA, levando à morte. Uma das principais famílias de proteínas responsáveis por vários processos que decorrem durante a apoptose é a família das caspases, enzimas que degradam ou quebram as suas proteínas-alvo em pontos específicos. A ação concertada das caspases é, globalmente, responsável pela maior parte das alterações morfológicas observadas em células que morrem por apoptose.

Num organismo adulto, existe assim um equilíbrio dinâmico entre a multiplicação celular (proliferação) e a apoptose, regulando a manutenção das células dos diferentes tecidos e órgãos, garantindo o funcionamento adequado de todos e do organismo como um todo.

No caso do cancro, o equilíbrio entre proliferação e a apoptose favorece a primeira. As células do cancro, quer pela ação de oncogenes quer pela inibição da função de genes supressores de tumores, dividem-se de forma não-controlada e inibem os mecanismos que poderiam levar à sua morte por apoptose. Assim, ao dividir-se em excesso, acumulam erros e danos no DNA levando à formação e à progressão do cancro. Há inúmeros genes (as proteínas por eles codificados) envolvidos nos mecanismos de resistência e na inibição da apoptose em diferentes cancros. Ao identificar as proteínas envolvidas na aquisição de resistência à apoptose, torna-se possível desenvolver terapias para induzir esse mecanismo de morte celular, contribuindo para o tratamento dos cancros. Aumentar a apoptose, nomeadamente através do aumento da função das caspases, é uma forma de conseguir impedir a progressão do cancro. Por exemplo, os diferentes agentes quimioterapêuticos utilizados para tratar grande parte dos cancros, incluindo o cancro da mama, induzem a morte de células malignas por apoptose. A ideia central subjacente a estas abordagens terapêuticas é a de impedir a divisão celular em excesso e favorecer a apoptose das células tumorais.

O Homem da Atlântida apresentava de forma exuberante características que demonstravam a ausência de morte celular por apoptose, nomeadamente as suas membranas interdigitais. Essa característica conferia-lhe vantagens, nomeadamente uma aumentada capacidade nadadora.

As células do cancro, ao inibirem a morte celular por apoptose, também acumulam defeitos que constituem, no seu todo, uma vantagem relativamente às células normais. Ao descobrirmos os mecanismos que regulam a apoptose, conseguimos desenvolver terapias que visam restaurar o equilíbrio e impedir o aparecimento e a progressão do cancro.

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