A opinião de Sérgio Dias, coordenador científico do iMM-Laço Hub, na coluna sobre cancro da revista Visão.

“A ligação, nomeadamente com agentes infeciosos como vírus ou bactérias, está obviamente presente no imaginário comum, quando falamos de cancro. Será que realmente “apanhamos” cancro? E se assim for, será então contagioso?” A opinião de Sérgio Dias, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular.

“Qual a origem do cancro?” ou “como “se apanha” o cancro?” São perguntas repetidas inúmeras vezes, em tertúlias ou palestras com teor mais ou menos científico ou podem surgir mesmo em conversas de grupos de amigos. A ligação, nomeadamente com agentes infeciosos como vírus ou bactérias, está obviamente presente no imaginário comum, quando falamos de cancro. Será que realmente “apanhamos” cancro? E se assim for, será então contagioso?

Nos idos anos 50 do século XX vários médicos e cientistas, ao procurarem perceber as causas que pudessem explicar a incidência de cancro do cólo do útero, observaram uma elevada incidência em mulheres que tinham vários parceiros sexuais ou que tinham iniciado a sua atividade sexual numa idade precoce. Este padrão surpreendeu a comunidade científica da época, nomeadamente porque parecia sugerir que este tipo de cancro pudesse ser contagioso, o que iria completamente contra as explicações científicas conhecidas nessa altura. Um virologista alemão, em particular, ficou especialmente interessado nesta aparente contradição e estudou-a aprofundadamente. Harold Zur Hausen começou por encontrar e publicar na literatura científica uma associação entre uma maior incidência de cancro do cólo do útero em mulheres que tinham verrugas genitais. Esta observação epidemiológica apoiava observações prévias realizadas por investigadores nos anos 30 do século XX, nomeadamente Richard Shope, que tinha demonstrado pela primeira vez que certos vírus de tipo “papiloma” infetavam coelhos (experimentalmente), o que levou por sua vez outros investigadores a perceber que esse tipo de vírus tinha a capacidade de formar verrugas genitais levando à formação de cancros.

As décadas que seguiram as suas primeiras observações foram, para Zur Hausen, de intensa procura de um eventual agente infecioso (um vírus do tipo papiloma era o óbvio candidato) que pudesse explicar e justificar o desenvolvimento e maior incidência de cancro do cólo do útero em determinados grupos populacionais. Foi em 1976 que Harold Zur Hausen postulou pela primeira vez que o “vírus do papiloma humano” (HPV) pudesse ser o agente infecioso responsável pelo desenvolvimento do cancro do cólo do útero. No entanto, somente em 1984, Zur Hausen conseguiu identificar as estirpes específicas de HPV responsáveis pela maioria dos casos de cancro do cólo do útero, especificamente os tipos HPV16 (cerca de 50% dos casos totais) e HPV18 (cerca de 20% dos casos totais). A sua pesquisa levou, nos anos seguintes, ao desenvolvimento de vacinas que visam precisamente evitar a infeção por HPV, nomeadamente dos tipos 16 e 18, mas também outros, de forma a reduzir a incidência de cancro do cólo do útero. As vacinas são administradas e raparigas e rapazes, idealmente antes do primeiro contacto sexual, de forma a garantir que não foram previamente infetados. Pelas suas descobertas científicas, Harold Zur Hausen recebeu o Prémio Nobel em Fisiologia e Medicina em 2008.

Os mecanismos de carcinogénese subjacentes à infecção por HPV são, agora, conhecidos em detalhe e o que o vírus consegue fazer – de forma simplificada – é garantir que certas células do cólo do útero se multipliquem de forma descontrolada, levando primeiro à formação de uma lesão pré-maligna, como uma verruga, ou outras e depois a um cancro invasivo. As alterações morfológicas, ao nível celular, associadas ao desenvolvimento de cancro do cólo do útero foram identificadas por dois médicos, um romeno, Aurel Babes, e um grego, George Papanicolaou. Foi o último claramente mais famoso, tendo criado o teste de “Papanicolaou”, consistindo na pesquisa de tais alterações morfológicas por microscopia, em esfregaços de epitélio vaginal ou uterino, o que foi amplamente aplicado e difundido a nível mundial. Com a descoberta do HPV como vírus responsável pelo desenvolvimento de cancro do cólo do útero, a sua deteção vem complementar os exames morfológicos. Com a vacinação, a incidência deste tipo particular de cancro deverá diminuir significativamente.

São vários os vírus e as bactérias que vieram a ser demonstradas como estando na génese de diferentes tipos de cancro. As associações mais conhecidas incluem (sem pretender ser exaustivo) o cancro da garganta e certos linfomas e a infeção pelo vírus “Epstein-Barr”, o sarcoma de Kaposi e o “vírus do herpes associado aos sarcomas de Kaposi”, os vírus da hepatite e o cancro hepatocelular (do fígado), e no caso das bactérias a infeção por Helicobacter pylori e o cancro do estômago, entre outros.

O que nos leva ao título desta crónica: poderá ser o cancro contagioso? A resposta a essa pergunta é simplesmente não. Ou seja, os agentes infeciosos, notoriamente o HPV, são de facto facilmente transmitidos de pessoa para pessoa. A sua infeção, por levar a pessoa à exposição a um agente com propriedades carcinogénicas, aumenta o risco de desenvolvimento nomeadamente do cancro cólo do útero. Mas transmitirmos um vírus a outra pessoa não é transmitirmos um cancro, o que na verdade não ocorre. Em suma, o cancro não é uma doença infeciosa, mas pode ser causado por agentes infeciosos.

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