A opinião de Sérgio Dias, coordenador científico do iMM-Laço Hub, na coluna sobre cancro da revista Visão.

“A formação de metástases, resultantes da progressão de um cancro, continua a ser o maior desafio para médicos oncologistas e cientistas que se dedicam ao estudo do cancro. Mas o que são metástases e porque é que o seu desenvolvimento tem tanto impacto biológico e clínico?” A opinião de Sérgio Dias, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular.

A formação de metástases, resultantes da progressão de um cancro, continua a ser o maior desafio para médicos oncologistas e cientistas que se dedicam ao estudo do cancro.

Mas o que são metástases e porque é que o seu desenvolvimento tem tanto impacto biológico e clínico? Do ponto de vista clínico, o aparecimento de metástases diminui significativamente a esperança de vida de um doente oncológico. A “sobrevida livre de doença”, um parâmetro importante para compreender a progressão de um cancro e a eficácia das diferentes terapias a que um(a) doente está sujeito(a), diminui drasticamente quando se detetam metástases. No caso do cancro da mama, por exemplo, doentes com metástases que afetem os pulmões, os ossos ou o sistema nervoso central têm uma probabilidade de sobrevida de pouco mais de 20%, cinco anos após o seu diagnóstico. Pelo contrário, doentes que não apresentem qualquer evidência de metástases ao diagnóstico, terão uma probabilidade de 100% de sobrevida aos cinco anos. Ao interferir com a função dos órgãos-alvo, e ao adquirir características diferentes do cancro de origem, as metástases complicam de forma dramática o curso clínico dos doentes, tornando-se refratárias (sem resposta) ou resistentes às terapêuticas disponíveis.

Do ponto de vista biológico, a formação de metástases é um processo extremamente complexo que envolve diferentes passos: saída das células do cancro do ponto de origem, sobrevivência na circulação sanguínea, entrada e sobrevivência no órgão alvo e, finalmente, formação de um novo cancro. Estes passos são acompanhados da aquisição e perda de várias características celulares e moleculares, por parte das células que metastizam.

Das várias alterações celulares associadas ao processo de metastização, realço duas: a capacidade de sobrevivência das células tumorais na circulação sanguínea, a “caminho” do(s) órgão(s) alvo, e a sua capacidade de sobreviver longos períodos sem serem detetadas, num estado de dormência ou quase-hibernação. A primeira revela uma capacidade extraordinária por parte das células tumorais disseminadas na circulação sanguínea do(a) doente em resistir ao reconhecimento e à sua eliminação por parte do sistema imunitário. O papel das plaquetas, elemento fundamental no processo normal de coagulação, e aqui ao aderirem-se e assim cobrirem as células tumorais disseminadas, literalmente escondendo-as das células imunitárias, é – neste caso particular – de enorme importância.

Mas um enorme desafio conceptual e prático, do ponto de vista biológico e científico, é compreender como é que células de um cancro são capazes de se alojar num órgão alvo, e nele permanecer num estado de dormência, quase-hibernação: há evidência clínica do aparecimento de metástases dez, ou mesmo vinte anos após o diagnóstico inicial de um cancro!

O que entendemos por dormência será esta capacidade específica das células tumorais? Dormência é entendida como um período no ciclo de vida de um organismo no qual o seu desenvolvimento é temporariamente suspenso ou adiado. A entrada num estado de dormência reduz a atividade metabólica e, assim, minimiza os gastos energéticos permitindo ao organismo conservar energia. A entrada num estado de dormência tende a estar associada às condições ambientais, nomeadamente à disponibilidade de recursos metabólicos. Em particular, a hibernação é um conhecido mecanismo utilizado por vários mamíferos para reduzir os gastos energéticos, permitindo assim a sua sobrevivência no inverno, período habitualmente associado a uma maior escassez de alimentos. Um animal prepara-se para hibernar acumulando gordura corporal através do consumo no final do verão e início do outono, o que representará uma fonte de energia essencial para sobreviver a um longo período de dormência. Durante a hibernação os animais sofrem várias alterações fisiológicas, como a redução do batimento cardíaco (reduz quase 95%) e a descida da temperatura corporal. A regulação da temperatura corporal é essencial para a sobrevivência dos animais em hibernação, ao favorecer a produção de calor através da ativação das máquinas de energia no interior das células, as mitocôndrias. Animais que habitualmente hibernam, nas latitudes mais elevadas do nosso hemisfério, incluem os morcegos, os esquilos e outros roedores. 

De forma surpreendentemente semelhante, as células do cancro disseminadas nos órgãos alvo, onde surgirão as metástases, são de facto capazes de permanecer isoladamente, ou em pequenos grupos em dormência durante longos períodos. Reduzem o seu metabolismo, limitam a multiplicação celular (podem não se dividir, ou dividir-se a uma frequência reduzida, durante vários anos), recorrendo ao metabolismo mitocondrial para sobreviver. Não se multiplicando e criando um nicho ou “ninho” adequado à sua quase-hibernação, as células tumorais disseminadas limitam a possibilidade de reconhecimento e eliminação por parte do sistema imunitário e limitam ainda a eficácia das terapias habitualmente administradas aos(às) doentes. Mais surpreendente é a recente descoberta de que existe acumulação de lípidos ou gordura, quer pelo consumo aumentado, quer pela produção própria, nas células do cancro disseminadas e residentes nos órgãos alvo de metástases, com evidentes semelhanças ao que observamos nos mamíferos que hibernam.

A conservação de processos biológicos, desde células isoladas, microorganismos e até organismos complexos, é observada com frequência, na natureza. O cancro, complexo conjunto de interações celulares e moleculares que ocorre “fora de tempo e de forma caótica”, recapitula vários processos biológicos conservados, incluindo a dormência e uma quase-hibernação.

Com base no estudo dos processos biológicos que regulam a hibernação de mamíferos, poderemos talvez compreender os mecanismos que regulam a formação de metástases e assim contribuir para melhorar a sobrevida dos doentes com cancro metastático.

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