A opinião de Sérgio Dias, coordenador científico do iMM-Laço Hub, na coluna sobre cancro da revista Visão.

“O desafio de tornar o Cancro uma doença crónica, controlável, continua bem presente nos laboratórios e nos serviços clínicos espalhados pelo mundo, e podemos afirmar com segurança que nunca soubemos tanto sobre este “Imperador de todos os males.” A opinião de Sérgio Dias, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular.

Procurei, nas 11 crónicas que antecederam esta, ilustrar através da utilização de imagens, personagens ou histórias, algumas das propriedades do Cancro. O objetivo desse exercício não foi meramente lúdico, procurei explicar de forma acessível o que é na verdade bastante complexo do ponto de vista biológico e clínico. O Cancro, conjunto vasto de doenças, é afinal o “Imperador de todos os males”, como escreveu, num livro de leitura obrigatória, de forma eloquente, incisiva e rigorosa o oncologista Siddhartha Mukherjee. E porquê esta classificação “imperial” para doenças que existem entre nós há pelo menos milhares de anos, como ilustrado na história do papiro de Edwin Smith? Porque um cancro afeta de forma dramática não só o órgão onde se desenvolve, por exemplo, a glândula mamária, mas também o seu hospedeiro.

Uma “ferida que não cicatriza”, que resulta numa massa de células proliferativas que resistem aos mecanismos de controlo dos próprios tecidos (as semelhanças com o síndrome de Marfan) e que não morrem facilmente (o que ocorre nas membranas interdigitais do homem da Atlântida). Um “novo órgão” capaz de criar a sua própria fonte de nutrientes e oxigénio, e que é capaz de resistir ao sistema imunitário do seu hospedeiro. Um conjunto de células que afeta metabolicamente a pessoa onde se desenvolvem, levando a perda de peso, diminuição de vitalidade, entre outros sinais, e que poderão criar novos tumores em órgãos distantes, espalhando-se pela circulação sanguínea e levando à formação de metástases. Essas podem ficar dormentes, num quase estado de hibernação, como os ursos, durante anos, sem qualquer sintoma clínico. Quando “despertam”, produzem sintomas variados, mas característicos e são detetadas por exames de imagem ou outros, e são frequentemente mais difíceis de tratar.

Peguemos num exemplo aleatório e ilustrativo do que mencionei até agora, para demonstrar a importância que tem conhecermos os mecanismos que governam o Cancro. A pessoa X deteta num auto-exame rotineiro (a tomar banho, por exemplo) um pequeno nódulo, na parte inferior da mama direita. Sente também desconforto numa das axilas, onde consegue sentir sem grande dificuldade um outro nódulo pequeno. Não tendo história de cancro na família, mas ficando apreensiva com estas pequenas alterações, dirige-se a um(a) profissional de saúde e pouco tempo depois e após realizar vários exames recebe a notícia, transmitida por um(a) oncologista, de que tem de facto um carcinoma da mama, com invasão de pelo menos um par de gânglios linfáticos. A classificação molecular do seu cancro permite definir a melhor abordagem terapêutica e – neste caso – receberá terapia anti-receptores hormonais antes de uma eventual cirurgia. A dependência dessa via de estimulação do crescimento das células do Cancro (no caso, os receptores hormonais) permite a utilização de fármacos que a bloqueiam, diminuindo o crescimento e causando a morte das células tumorais.

Se a resposta for muito favorável resultando na diminuição do tamanho do tumor, a cirurgia permitirá remover o que resta do Cancro e a pessoa ficará em “remissão clínica”, sem doença clinicamente evidente. Através do conhecimento detalhado da biologia molecular e celular do Cancro, foi possível desenvolver terapias dirigidas/específicas, que funcionam de forma eficaz numa grande parte dos casos dos Cancros detetados numa fase precoce. Na eventualidade do Cancro vir a reaparecer, sob a forma de metástases à distância (no Cancro da mama é frequente existir metastização nos ossos, por exemplo), as possibilidades de tratamento poderão envolver classes de fármacos dirigidos contra outras propriedades do Cancro: inibidores da angiogénese, associados a agentes quimioterapêuticos que matam as células tumorais; imunoterapia, que estimula o reconhecimento e a eliminação das células do Cancro por parte do sistema imunitário; inibidores de proteínas que controlam a divisão celular, para impedir a divisão descontrolada das células do Cancro; bloqueadores do metabolismo tumoral. Entre outras possibilidades.

O desafio de tornar o Cancro uma doença crónica, controlável, continua bem presente nos laboratórios e nos serviços clínicos espalhados pelo mundo, e podemos afirmar com segurança que nunca soubemos tanto sobre este “Imperador de todos os males”. Mas a tradução célere do conhecimento científico para a realidade das pessoas que vêm a desenvolver um Cancro ainda não acontece com a celeridade que seria desejável. Mais e melhor ciência, que se traduza em melhores tratamentos é por isso necessária.

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