A opinião de Sérgio Dias, coordenador científico do iMM-Laço Hub, na coluna sobre cancro da revista Visão.
“Uma das mais curiosas lendas atribuía o seu talento a um pacto que Paganini teria feito com o diabo: talento extraordinário em troca da sua alma. Parte dessa capacidade de Paganini esteve associada a ter contraído síndrome de Marfan: ele tinha dedos excepcionalmente longos e delgados, conseguindo tocar três oitavas, nas quatro cordas do violino, com uma mão.” A opinião de Sérgio Dias, investigador principal do Instituto de Medicina Molecular
Niccoló Paganini (1782-1840) foi um compositor e violinista Italiano, considerado por muitos críticos como o maior violinista da história, o maior violinista de todos os tempos. Sendo dotado de uma técnica extraordinária, algumas das suas obras mais conhecidas foram durante muitos anos consideradas impossíveis de tocar por outros violinistas. As suas performances tornaram-se verdadeiramente míticas, tendo sido motivo de inveja mas também de lendas que visavam explicar o seu verdadeiro génio. Uma das mais curiosas lendas atribuía o seu talento a um pacto que Paganini teria feito com o diabo: talento extraordinário em troca da sua alma. Parte dessa capacidade de Paganini esteve associada a ter contraído síndrome de Marfan: ele tinha dedos excepcionalmente longos e delgados, conseguindo tocar três oitavas, nas quatro cordas do violino, com uma mão. Tinha também dedos muito ágeis, sendo extremamente rápido a executar as complexas composições que criou. Quer pelo seu talento, quer pelo infortúnio de ter sofrido de síndrome de Marfan, Paganini é ainda hoje incontornável no mundo da música clássica.
O síndrome de Marfan é uma doença genética que afecta um em cada 3 a 5000 indivíduos e que se caracteriza maioritariamente pela disfunção dos tecidos conjuntivos. O tecido conjuntivo é, em traços gerais, o “cimento” que constitui a base de sustentação, de suporte e morfológica, dos diferentes tecidos e órgãos. Constituído essencialmente por fibras de diferentes elementos de matriz extracelular (entre as células), como diferentes colagénios, é fundamental para o desenvolvimento e para a função adequada dos diferentes órgãos do nosso corpo. A acumulação de elementos de matriz extracelular em excesso traduz-se, por exemplo, em fibrose, inflamação crónica e perda de função dos respectivos órgãos. A destruição excessiva dos elementos dessa matriz extracelular pode traduzir-se num tecido conjuntivo mais “laxo”, com menos rigidez e consequentemente alterações morfológicas e também funcionais dos respectivos órgãos. No caso dos doentes com síndrome de Marfan, de forma simplificada, uma mutação num gene expecífico, a fibrilina-1, resulta na acumulação excessiva do “fator de crescimento tecidual beta” (“tissue growth factor beta”, TGF-beta, do inglês). A acumulação de TGF-beta leva a inflamação crónica, e também à destruição de elementos da matriz extracelular (como colagéneos) do tecido conjuntivo contribuindo para uma maior fragilidade de diferentes órgãos. Os indivíduos com sínfrome de Marfan são de uma forma geral mais altos que a população em geral, têm braços desproporcionalmente longos em relação ao resto do corpo, têm dedos com evidência de aracnodactilia, ou “dedos de aranha”, compridos e delgados, mãos e pés alongados e significativamente mais compridos que a população em geral.
Os cancros sólidos como na mama, pulmão, próstata, etc, em oposição aos cancros “liquídos”, como as leucemias ou linfomas apresentam habitualmente uma elevada taxa de renovação da matriz extracelular naquilo que é o microambiente tumoral. Esse “estroma” é, na verdade, o tecido conjuntivo dos cancros e, em muitos cancros sólidos, é mais abundante que a componente que incorpora as próprias células cancerígenas, podendo, em certos cancros, constituir mais de 70% do total do tecido afetado. Com a progressão do cancro verifica-se acumulação de TGF-beta que é produzido pelas células cancerígenas, ou por elementos do próprio estroma. Também aqui a acumulação desta molécula contribui para a degradação de colagénios e outras fibras da matriz extracelular, libertando fatores e enzimas que degradam as fibras, criando um estado de inflamação que favorece a expansão do tumor. Diferentes estratégias têm sido desenvolvidas para bloquear a ação do TGF-beta, no entanto, estamos perante uma verdadeira “espada de dois gumes”. Durante o desenvolvimento tumoral: em fases iniciais bloqueia a multiplicação excessiva das células tumorais, ao passo que em fases mais adiantadas e com a a sua acumulação contribui para a progressão dos cancros e a formação de metástases. Para além deste papel aparentemente quase contraditório, o TGF-beta é também fundamental para a manutenção dos tecidos conjuntivos de diferentes órgãos, pelo que a sua inibição sistémica tem tido sucesso terapêutico limitado. Procura-se, agora, perceber de que forma será possível bloquear especificamente a acção do TGF-beta tumoral, em fases avançadas do desenvolvimento tumoral, sem afectar a sua função em outros órgãos. Mais investigação, precisa-se.
Ao aprendermos mais como o cancro se desenvolve e progride, aprendemos também o que regula e o que determina o aparecimento de diferentes doenças, e vice-versa. O caso do síndrome de Marfan é paradigmático: o mesmo factor (TGF-beta) desempenha funções essencialmente idênticas nesses doentes, e durante a progressão dos cancros sólidos.
Da História, mesmo o estudo superficial de personagens ou acontecimentos vários, como o quase-inexplicável virtuosismo de Paganini, obtemos por vezes indicações de mais do que factos curiosos, verdadeira evidência científica dos processos moleculares e celulares que regulam doenças complexas, e do cancro.
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